Há quase quinze anos eu não acompanhava um reality show. Não que eu seja um desses "intelectuais" que acha que vai ganhar um título de mestrado cada vez que responde que não assiste BBB. Acontece que na edição que eu assisti (o BBB do Alemão, lembra?), eu me envolvi tanto, que percebi que não tinha muita maturidade para isso. Acabei me tornando um daqueles torcedores que só faltava chorar cada vez que um de seus preferidos é eliminado. Depois, com o tempo, não acompanhando outras edições, o tipo de programa foi perdendo significado e se tornando desinteressante. Ano passado, inclusive, vi comentários de colegas jornalistas nas minhas redes sociais dizendo que a campeã de 2019 teria ficado famosa ao causar polêmicas com comentários racistas e preconceituosos sobre religiões de matriz africana. Sem fazer julgamento, até porque não a conheço nem assisti, mas achei particularmente triste visto que ano passado foi marcado por diversos episódios de machismo, racismo e até neonazismo no País. Mais um motivo pra eu não querer mais assistir esse tipo de programa.
Até que, em 2020, algumas semanas depois de ter iniciado a nova edição, meu news feed é bombardeado por posts sobre episódio de feminismo em pleno BBB20. Descobri que, por causa de um acontecimento de explícito machismo dentro da casa, mulheres se uniram com tal força e com tanta repercussão, que a palavra 'sororidade' foi uma das mais buscadas no Google aqui no Brasil após uma das participantes a mencionar ao vivo. Então pesquisei e vi que a Globo havia selecionado, dentre os competidores da edição, advogada de direitos humanos, gente nascida e criada em favela, pretos, ativistas feministas, artistas de teatro, música e também alguns influenciadores digitais - acredito que para dialogar com público mais jovem que, atualmente, costuma estar afastado da TV aberta. Achei a proposta interessante e essa combinação de gente não teria como ser por acaso. A intenção só poderia ser provocar um diálogo sobre diversidade, cultura e direitos humanos no horário nobre em rede nacional. Imediatamente, comecei a assistir, quando já haviam se passado algumas semanas.
Foi decepcionante! De fato, alguns integrantes tinham muito o que falar. Havia um conteúdo interessante, um repertório e uma diferente mistura de histórias de vida, formação, acesso a oportunidades. No entanto, a edição do programa parecia não ter interesse em explorar esse tipo de conteúdo em sua potência. Era possível perceber que a intenção era muito mais fazer com que as pessoas fossem o assunto, ao invés de suas ideias ou ideais. Era falar muito mais sobre os participantes do que seus posicionamentos. Havia um esforço para que os competidores gastassem mais tempo falando mal uns dos outros do que propondo discussões onde eles pudessem expor sua visão de mundo e até mesmo conflitar as diferentes perspectivas dos outros. Embora fosse nítido o protagonismo de temas tão importantes como machismo, racismo, desigualdade social e direitos humanos no diálogo dos participantes com os telespectadores, isto só ocorria nos bastidores, ou seja, fora do momento ao vivo e fora das dinâmicas e jogos propostos, ganhando repercussão por meio internautas que seguiam de forma ativa. Já o funcionamento do programa e os jogos eram desenvolvidos no sentido de fazer com que um criticasse, alfinetasse ou brigasse com o outro por causa de suas características pessoais. Em um dos jogos propostos, uma das participantes chegou ao ponto de chorar ao vivo, dizendo o quanto se sentia mal dentro de constantes confrontos, brigas e julgamentos. Senti vergonha pelo apresentador, que promove isso com sorriso no rosto, como se fosse um espetáculo provocar brigas e esse sentimento de dor nas pessoas para "agradar" o público.
Se por parte das emissoras existe essa crença de que, ainda hoje, a forma mais efetiva de gerar entretenimento e segurar audiência é fazendo com que as pessoas briguem, então não evoluímos absolutamente nada desde a Roma Antiga. Agora o Big Brother é o novo Coliseu. Os participantes são os gladiadores. E a gente fica assistindo as pessoas se matarem enquanto come pipoca em casa. Eu prefiro crer que essa seja uma miopia dos responsáveis do programa. Acredito que, assim como eu, outros possam ter sido atraídos à edição justamente por se interessarem pelas temáticas que seus participantes estavam ávidos a debater, com mais profundidade, propriedade e de forma educativa e edificante.
Percebi que não estava sozinho nessa linha de pensamento, quando vi que, ao eleger os finalistas, ao invés do perfil agressivo, o público elegeu mulheres que ajudaram a ensinar ao Brasil o que é sororidade e deixou como último homem sobrevivente um artista preto nascido e criado na favela que, além de ser modelo de ordem, organização e higiene de uma casa, aproveitou cada brecha durante todo o programa para cavar oportunidades para explanar sobre a formação e cultura black e sobre como se transformou ao longo da vida, se livrando do que ele percebeu ser uma masculinidade tóxica. Foi interessante ver que, apesar dos esforços da produção durante todo o programa para promover confrontos e intrigas entre os participantes, o próprio público mostrou que não era necessário. Os telespectadores votantes elegeram como finalistas os participantes que mais souberam conviver e respeitar as diferenças. E, para fechar com chave de ouro, a grande campeã é uma mulher preta, filha adotiva, que, mesmo sem muitos recursos financeiros, se tornou médica anestesiologista. Ela, na verdade, já havia sido campeã durante a vida. Só está ocupando mais um de seus espaços por direito. E mostrou que representatividade importa.
A lição que deveria ficar, não apenas à emissora, mas a todas as empresas é que a população está dando uma resposta. E que toda ação gera uma reação. Se por um lado temos um anseio pela volta de um obscurantismo que aflora racismo, machismo e preconceito, por outro lado temos milhões de pessoas no País tentando dizer que partilham do mesmo tipo de pensamento de quem está buscando um discurso de melhor convivência com a diversidade. É passada a hora de as empresas notarem os sinais de maturidade que grande parte de seus consumidores está dando e o quanto estes anseiam por produtos e marcas que queiram discutir e aprofundar nestes temas.
Parabéns à vencedora da edição! Parabéns aos telespectadores que deixaram clara sua preferência por quem sabe conviver bem em diversidade. Parabéns aos finalistas que mostraram que é possível divergir de maneira respeitosa! Parabéns às equipes de pesquisa e recrutamento do programa, que, de uma forma ou de outra, conseguiram fazer uma população em massa refletir a respeito de temas relacionados à diversidade, inclusão e direitos humanos.

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